Jimi Hendrix e a delícia de não saber inglês

25/09/2012

Hey Joe. Desde que ouvi a primeira vez, em 1972, nunca deixei de querer ouvir sempre, quase todos os dias, Jimi Hendrix.
Hey Joe. A importância desta música, o que só agora eu sei, é dada pela quantidade de vezes que é citada com destaque nas diversas capas. Nalgumas ocupa quase toda a capa.

Hey Joe. Ouvi um anedota de que Haroldo de Campos, ouvindo seu filho ouvir no rádio Star Splanged Banner (Woostock, 1969), rádio que anunciava morte de Hendrix, e exclamou: olha o que eu perdi. O poeta concreto e radical passara sem notar a existência de Jimi Hendrix. E aquele anuncio era o anúncio de uma dupla perda. O grande Haroldo ali era um déficit. E Haroldo de Campos é sempre um poeta, tradutor e crítico que quero ir conhecendo. Sem saber Inglês, Francês, Alemão, Grego e Latim, vou lendo suas traduções e notas de tradução, tentando pegar alguns fragmentos. É duro ser monoglota. E também ser poliglota [Millôr Fernandes ao ouvir dizer que Paulo Leminski  estudara 16 idiomas: “Paulo Leminski fala 16 idiomas: que solidão!”.]

Hey Joe. Durante décadas quando me lembro de Jimi Hendrix, e me lembros quase todos os dias, as vezes várias vêzes ao dia, é essa música, Hey Joy, que vem primeiro.  Está longe da radicalidade de Star Splanged Banner que sempre ouvi como um protesto à guerra do Vietnã. Pode ser mais uma lenda que criei. Como é instrumental, permite que eu sinta o que eu quiser e crie a lenda que eu quiser.

Hey Joe. É a música que me vem à cabeça sempre que penso em um amigo. Esta banalidade do ” Hey Joe”  na voz de Jimi Hendrix me parece uma grito de amizade quase primal. Agora mesmo uma jovem virou amiga no facebook e diz-se fanática por Jimi Hendrix. Quase fiquei amigo, claro, quase amigo de verdade dela, só por isso; apesar de não ser tão fanático, pois, mesmo na música tenho outros heróis, muitos, dezenas. São tantos meus heróis na música, na literatura, na poesia, na pintura, na escultura que acho que não tenho ídolo nenhum. O que me é muito pesado. Todo o dia eu quero dedicar minha vida a um destes heróis, por exemplo Dostoiévski, mas no outro dia é Nietzsche, noutro é Stravinsky, noutro é Tom Zé, noutro é o balé, o Grupo Corpo. São meus ídolos, mas não consigo ser fiel a nenhum deles, noutro é Freud. E eu não consigo me livrar destes ídolos. E noutro dia é mais outro e noutro dia arranjo um novo. E se minha casa está abarrotada de livros, discos e filmes, minha cabeça está abarrotada de querer mais. E acho que sou um acumulador de frases, de músicas, de textos, de capas. E cada vez sei que sei menos, inclusive do próprio Sócrates que Platão disse que ele disse isso. Mas como parar se eu não quero parar.

Estas letras mal traduzidas, mesmo não sabendo Inglês vê-se logo que são mal traduzidas, estragam nossas mais caras fantasias. Hoje conhecendo o sentido da música não se o que fazer com ela.

Quando Gilberto Gil lançou Domingo no Parque fiquei fascinado pelos arranjos de Rogério Duprat. Até hoje, acho, um dos melhore arranjos da música popular brasileira, assim como os arranjos de Construção de Chico Buarque,  arranjos também de Rogério Duprat. Mas ficava mortificado com esta carnificina passional, dois corpos no chão de Juliana e do amigo João.  Mas não deixei de ficar fascinando pelo sorvete vermelho, morango e sangue. Arranjei até uma fuleira justificativa erudita, uma tal de psicologia do Gestalt, da qual  não manjo bulhufas, que num dos seus conceitos postula que o meio ambiente circundante como formas e cores, inclusive palavras e letras, influenciariam as decisões das pessoas.


E há muitos anos eu não sabia o que fazer o Noel Rosa, o meu primeiro grande ídolo na música popular brasileira. Ainda o maior.  Uma das músicas que mais me lembra Noel Rosa narra um maldito crime passional. De novo é uma amigo que perde a vida por causa de uma cabrocha. Mário Reis foi um dos intérpretes. Mário Reis, cuja maneira coloquial de cantar, dizem, antecipa a Bossa Nova e o canto quase falado. Para a época do império do dó de peito um marco e, dizem, um choque.

Hey Joe. Porque músicas tão lindas falam de coisas tão horrorosas. Matar mulheres, matar amigos em disputa por mulher, nenhum desprezo por mulher, mas total desprezo pela disputa.  Não entanto Joe não vou deixar de ouvir estas músicas. O diabo é que as duas da minha língua, que eu acho que entendo, tem versos maravilhosos, além da própria música. Versos maravilhosos que narram horrores.  Também sou fanático pelos versos traduzidos, por Haroldo de Campos, da Ilíada que narra um guerra de dez anos, com massacres e hecatombes, tudo por uma tal Helena. Destruíram um cidade, morrem reis e heróis. Mulheres foram estupradas, como são em todas guerras. Os chefes guerreiros incitam seus homens a sonharem com a invasão de Tróia  e com o estupro de suas mulheres. E como diz Haroldo de Campos, a Ilíada é tão grandiosa enquanto poesia que não há nunca o verso inferior ao outro, como ele diz, ela nunca decaí.

E música  Hey Joe canta o amigo que acabou de assassinar a mulher por ciúme.  E parece ser solidário que este assassino  e narra sua fuga para o México.  Durante décadas, sem saber o sentido, ouvi o som. E captei o tom de amizade profunda que a música traduz.  As Letras (mal) Traduzidas, na internet, fizeram um grande estrago. Pois se a Ilíada é supremamente bem traduzida. Se Noel e Gilberto Gil fazem versos maravilhosos; eu gostaria de ter ficado com a voz de amizade e som de Jimi Hendrix e não este versos fuleiros, para uma grande música.

E sei que em busca de sentido, acabarei sempre matando os sonhos.
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Talvez haja um consolo. Com a formidável evolução do homem não haverá mais necessidade de Ilíadas. Nem mesmo os horrores do Auschautz, Teblinka ou Gullag. Nunca houve guerra ou revolução sem estupros. Mas com a evolução das guerras modernas os massacres são como videogames, que todos mundo assiste pela televisão. Madeleine Albright pode dizer que 500 mil crianças mortas como consequência da primeira guerra contra o Iraque valeu a pena. Já que guerra de massacre e mesmo os cercos e a fome exclui o contato humano e a guerra suja. Vivemos um mundo maravilhoso onde estas 500 mil crianças não viram literatura. Ou porque é horror demais ou porque nem é mais horror? Agora é a guerra limpa. Guerra corpo a corpo, com toda a sujeira e crimes, fica para a África, Ásia e Oriente Médio, claro, entre eles. As grandes potências tem sua reluzente e limpinha máquina de esmagar carne humana.
Talvez aqui tenha um paralelo a fazer. Como são assinadas mais de 2 mil mulheres no Brasil, por ano, não é mais o horroroso crime passional que atraia, mas também horrizava, e era matéria para poetas e escritores. Mas o massacre é banal. Massacre vira estatística ou folha de jornal. Talvez vire tese científica com bolsa Fapesp, mas geral pouca indignação ou dor, matéria das artes.
Recentemente vemos 150 mil mortos na Síria, sem comover ninguém. E sabemos que quem morre, hoje, numa guerra, ou revolução, em primeiríssimo lugar são os civis indefesos, crianças, velhos e mulheres.
Talvez a destruição em massa não comova mais ninguém.

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Aqui vai a versão de Noel Rosa, na voz de Mário Reis. Mas como é o Youtube, logo logo eles retirarm.
A versão do Grooveshard, penso, a voz é do próprio Noel, apesar de lembrar muito a interpretação de Máriko Reis.

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01. Madeleine Albright [ em A Serbian Film, de Srđan Spasojević]
02. Noel Rosa [Jornal do Porão n. 4]
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link

01. Madeleine Albright diz que 500 crianças mortas no Iraque : ” valeu a pena


procerão, um conto de 1984.

23/06/2012

procerão

Procerão, 1

Procerão, 2

Procerão, 3

Procerão, 4

Procerão, 5

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Sonhava ser jogar de futebol, por mais que fosse um aplicado perna-de-pau e sabia disso. O sonho era um lenitivo para dormir. Um sonífero para esquecer. Um auto-engano para espantar a dureza do trabalho na roça e depois do colégio interno onde cheguei semi-analfabeto, tendo que estudar latim. Sempre lembro com pena e um certo regozijo do chute formidável que dei na gramática Ragon. Mas defendo que o latim volte às escolas secundárias .Cinco décadas depois, falar 50 anos parece que as coisa fica pior, sonho  dando grandes chutes, principalmente sonho acordado, apesar de chutar fraquinho fraquinho. E com as duas pernas como pelé. E fico rindo de tamnha asneira e durmo feliz. Assim sonho com pintura sem saber desenhar um patinhos, começando com um dois. Com desenho e arquiteturas. Fui construir um caminhão de madeira para meu filho e, ao final, consegui um trenzinho pintado de vermelho e verde. Pior, foi duro descartar dele depois. Fiz discursos revolucionários em meio a uma simples greve. E diante de qualquer criança pedindo esmolas, mesmo daquela criança que Pagú deu esmolas, em 1933, nas ruas de Moscou, em sonho com revoluções. E continuo brigando com Elis Regina e Belchior, pois acho sonhar melhor que viver. Claro que viver sonhando.

Em 1984 eu sonhava em ser escritor, mesmo notando que qualquer um que eu lia escrevia melhor que eu. Este conto, talvez foi a última tentativa, foi o marco da minha desistência. Nunca mais escrevi senão panfletos sindicais. E depois viciei-me em e-mails, fingindo que escrevo cartas, hoje um gosto solitário.  Ainda tenho a mesma covardia de 1984.  Mas não repudio esta pequena história.  Gosto dela, tanto que guardei. E aqui publico.

Tive a tentação de dedicar ao meu amigo Mário Augusto Medeiros da Silva,  xará e coloborador, esporádico, deste blog. Um vingança por ele ficar insistindo que eu devo escrever.

E escrevo isso, e leio sempre todas as coisas, ao som de alguma música exagerada, melhor, toda música é um exagero. Neste momento uma música árabe, dilacerada, com Yo-Yo-Ma . Que justifica qualquer desatino.  A maior das artes.  Que na minha república dos sonhos,  desafiando Platão, poetas, dramaturgos, humoritas, deviam ser seres privilegiados e protegidos, inatingíveis. E os músicos deveriam ser mesmo tratados com deuses, assim mesmo como  eram tratados os artistas de rock. Deuses  como eu acho que são Jimi Hendrix e Bach. E filósofos só seriam aceitos se frequentassem um baile funk e dançassem.

Como não danço, ninguém deve acreditar em nada que escrevo.